O cenário impensável de a Europa fazer vénia às tarifas de Trump. O que se seguirá ao ‘Dia da Humilhação’ e quais os efeitos?

Apelidado já nos bastidores de Bruxelas como o “Dia da Humilhação”, o entendimento foi aceite sob forte pressão económica e geopolítica, expondo clivagens profundas entre os Estados-membros e revelando uma Europa dividida, enfraquecida e sem rumo claro.

Pedro Gonçalves
Agosto 4, 2025
12:56

O recente acordo comercial entre a União Europeia e os Estados Unidos, promovido por Donald Trump, marca um ponto de viragem para a política europeia — e não pelas melhores razões. Apelidado já nos bastidores de Bruxelas como o “Dia da Humilhação”, o entendimento foi aceite sob forte pressão económica e geopolítica, expondo clivagens profundas entre os Estados-membros e revelando uma Europa dividida, enfraquecida e sem rumo claro.

A imposição de tarifas por parte de Trump revelou as diferentes prioridades económicas entre os membros da UE. Alemanha, com um superavit comercial com os EUA de mais de 85 mil milhões de euros, e Itália, com 42 mil milhões, foram dos principais impulsionadores da aceitação do acordo. Para os países nórdicos — Suécia, Dinamarca e Finlândia — a lógica foi pragmática: mais vale um mau acordo do que uma guerra comercial.

França, por sua vez, cuja exposição comercial aos EUA é bem menor, reagiu com indignação. O presidente francês considerou a postura europeia como uma “rendição”. Hungria aproveitou a ocasião para atacar diretamente as instituições da UE, reforçando a sua linha eurocética. Já o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, afirmou apoiar o acordo, embora sem grande entusiasmo, espelhando um mal-estar latente entre os líderes europeus.

O pacto com os EUA obriga agora a respostas económicas urgentes — investimentos em defesa, em infraestruturas e em recuperação de competitividade. Mas apenas alguns países, como a Alemanha, têm margem orçamental para o fazer sem sofrer represálias dos mercados financeiros. França, Itália e Espanha, com maior limitação fiscal, terão dificuldades em compensar as perdas causadas pelas novas tarifas e pela desvalorização do dólar face ao euro.

Historicamente, a resposta europeia a crises de competitividade tem passado por cortes salariais e flexibilização das condições laborais — uma receita arriscada num contexto de desaceleração económica e tensão social. Se os investimentos não forem suficientemente robustos, o risco de agravamento das desigualdades entre Estados-membros cresce de forma preocupante.

As divisões internas da Europa também se evidenciam no plano geopolítico. A proximidade à Rússia — e a consequente dependência energética — continua a dividir o continente. Enquanto países como Polónia e os Estados Bálticos reforçam o seu alinhamento com Washington, outros como Hungria e Eslováquia mantêm posições ambíguas, mais interessadas nos benefícios económicos da ligação a Moscovo.

A União Europeia, que deveria apresentar-se como uma força moral e estratégica unida, está também a ser questionada pela sua resposta tímida ao conflito em Gaza. A ausência de medidas firmes contra o governo de Benjamin Netanyahu mina ainda mais a credibilidade europeia no cenário internacional. “Se a UE não se opõe a Netanyahu, que sentido têm os valores europeus?”, questiona-se abertamente em círculos diplomáticos.

O episódio do encontro em solo escocês, onde os líderes europeus pareceram ceder de forma submissa à pressão de Trump, foi simbólico. Tal como a receção fria da delegação europeia em Pequim, estes gestos alimentam a perceção de uma Europa irrelevante. “A União tem sentido se nos torna mais fortes. Se transmite fraqueza ou servilismo, será descartável”, alerta um analista em Bruxelas.

Reações oficiais: negação e autoengano
As declarações dos líderes europeus após o acordo com Trump foram marcadas por uma retórica tranquilizadora. O chanceler alemão Friedrich Merz minimizou as concessões, salientando que se evitou uma guerra comercial. “O acordo garante relações comerciais previsíveis e beneficia empresas e consumidores dos dois lados do Atlântico”, afirmou.

Mas esta visão é desmentida por muitos observadores, que apontam para a passividade europeia na negociação. “Bastava ameaçar o superavit americano em serviços, tecnologia e finanças para reequilibrar o jogo”, nota um especialista em comércio internacional. Outros sugerem que, mesmo aceitando os termos de Trump, a UE deveria ter lançado imediatamente um plano de recuperação e investimento, à imagem do que Mario Draghi protagonizou durante a crise do euro. A ausência de uma reação estrutural reforça a sensação de fragilidade institucional.

Gaza: uma omissão reveladora
A passividade europeia face à guerra em Gaza destaca ainda mais a falta de coerência estratégica da União. A capacidade de aplicar sanções — usada contra a Rússia — existe, mas não foi mobilizada contra o governo israelita. “A diferença não é de meios, é de vontade política”, afirma um diplomata europeu sob anonimato.

Direitas soberanistas à boleia da crise, esquerdas em xeque
Este clima de descrença institucional favorece sobretudo as forças nacionalistas e eurocéticas. Os partidos de extrema-direita, que defendem uma UE menos intervencionista e mais poder para os Estados, têm agora mais espaço para explorar o descontentamento.

As esquerdas, por outro lado, sofrem com esta crise. Tradicionalmente pró-europeias, continuam a acreditar que a UE pode reagir e tornar-se uma potência estratégica. Defendem a descarbonização, a digitalização e o comércio internacional como eixos de futuro, mesmo quando o mundo caminha em sentido contrário. “A fraqueza da UE prejudica as esquerdas, porque apostaram tudo no internacionalismo europeu”, analisa um dirigente socialista espanhol.

Apesar disso, os partidos progressistas não apresentam propostas reformistas à altura do momento. Falam contra a extrema-direita, mas não oferecem planos concretos para uma nova Europa. A ideia de uma força soberanista de esquerda continua a ser uma raridade política no continente.

Soberania subordinada: a contradição das novas direitas
As direitas soberanistas enfrentam, no entanto, um dilema estratégico: embora critiquem Bruxelas, são agora confrontadas com uma realidade em que a UE está a transferir soberania não para os Estados-membros, mas para Washington. “Recuperar soberania não é entregá-la à Casa Branca”, ironizou recentemente um eurodeputado francês.

Marine Le Pen, por exemplo, poderia ganhar popularidade com um programa gaullista de reforço do poder francês, mas teria de enfrentar a hostilidade americana. A contradição entre nacionalismo e subordinação a Washington é difícil de contornar.

Já as direitas liberais, como a alemã CDU, estão mais confortáveis com este novo equilíbrio. Podem adotar partes do discurso da extrema-direita sem abdicar da ortodoxia económica nem da submissão estratégica aos EUA. A sua ascensão, no entanto, depende da fragilização contínua da UE.

O desafio central da Europa: soberania ou submissão?
O dilema que atravessa o continente é profundo: dissolução silenciosa ou integração determinada. A Europa encontra-se num ponto existencial, entre a impotência e a possibilidade de potência. A questão da soberania — económica, territorial e política — está no centro deste debate.

“Vivemos entre os que desejam que a UE se desfaça e os que sonham com uma Europa mais forte, mas nenhum dos dois se atreve a dizer isso em voz alta”, resume um académico em Bruxelas.

A escolha está sobre a mesa. A humilhação sofrida pode levar à resignação ou à renovação. As próximas decisões políticas definirão se a União Europeia está condenada à irrelevância ou se renascerá como verdadeiro bloco de poder num mundo cada vez mais competitivo.

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